sábado, 12 de março de 2016

A culpa é da vítima


Na pesquisa que elaborei sobre este assunto fui surpreendido com a descoberta de que “o cristianismo é responsável pela mentalidade de conformismo" da vítima por esta não se livrar do pesadelo que lhe consome a vida.

É este o texto justificativo: "Tendes ouvido que foi dito: Olho por olho, e dente por dente. Eu, porém, vos digo: Não resistais ao homem mau; mas a qualquer que te dá na face direita, volta-lhe também a outra; ao que quer demandar contigo e tirar-te a túnica, larga-lhe também a capa; e quem te obriga a andar mil passos, vai com ele dois mil. Dá a quem te pede, e não voltes as costas ao que deseja que lhe emprestes." Mateus 5:48-42


Mas onde encontramos que Jesus dá legitimidade ao agressor neste texto? Para não incorrermos em interpretações erradas, convém observar os outros tópicos em que Jesus está a falar para a multidão no sermão da montanha, precisamente onde este ensino se encontra:

Primeiro Jesus organiza a sua pregação por tópicos: "bem aventurados…" Cap.5:3-12.
Depois Jesus detalha o corpo do seu sermão e fala para:
- pessoas comuns que devem ser sal e luz, v.13-16
- religiosos que não deveriam ficar-se pelo cumprimento da lei, v. 17-20
- homicidas que se encolerizam contra o irmão, v.21-26
- adúlteros que desprezavam as mulheres sem razão, v. 27-32
- pessoas falsas sem carácter e sem palavra, v.33-37
- pessoas exaltadas que por uma banalidade punham a sua própria vida em causa, v.38-42
- pessoas sem misericórdia que eram redutoras suas nas escolhas e relacionamentos para com os outros, v.43-48

Ainda que reconheçamos que o sermão da montanha tem muita riqueza na formação do carácter pessoal, temos de concluir pelo resumo e contexto descrito acima, que o foco de Jesus é exortar pessoas com mau carácter cujas más atitudes prejudicam a sua própria vida e a dos outros.

O “homem mau” a que Jesus se refere no verso 39 não é pior do que o que é vítima dele. Ambos são ruins. Num contexto de sociedade oprimida pelos Romanos era comum uma reação impulsiva que resultava numa confusão e onde, claro, quem perdia a vida era o cidadão judeu. Logo, parece óbvio que mais bofetada menos bofetada, mais milha menos milha, o mais precioso é a vida. A vingança ou o "olho por olho" não é o caminho que nos livra das situações difíceis.

Tornar este texto numa razão justificativa para que a vítima sofra indefinidamente os ataques de um agressor é um abuso inaceitável. A correção que Jesus inova no comportamento dos seus conterrâneos não tem por objectivo torná-los vítimas, mas sim pessoas saudáveis e mais realizadas na vida. O sentido da mensagem de Jesus durante toda a sua vida é que as pessoas mudem os seus corações e corrijam o seu caminho diante de Deus e dos homens. Neste contexto a mensagem dos profetas e dos apóstolos também não é diferente. Assim, quando a Bíblia nos guia no sentido da cruz é também para que alcancemos vitória; o caminho da humildade leva-nos à honra; o caminho da graça leva-nos à liberdade.

A Bíblia não é um livro para “os outros”, é um manual da vida para cada um de nós pessoalmente. A Bíblia contém regras de conduta e sabedoria para cada um de nós e em coerência dá-nos o direito de escolhermos aquilo que de acordo com o seu conselho NÓS PODEMOS DECIDIR SOBRE A NOSSA VIDA mesmo quando essas decisões nos custam um preço elevado.

O sentimento de culpa da vítima.

Aceitar uma culpa que não se tem não alivia o sofrimento, alimenta-o. Violência doméstica, negligência e traição continuada estão entre as principais causas de sofrimento no lar.

  1. A violência pode ser física ou psíquica, pode deixar marcas no corpo. Por sua vez, as palavras proferidas deixam marcas profundas na alma;
  2. A negligência pode apresentar-se sob a forma de não contribuição para as despesas do lar; não contribuir com dedicação para a manutenção da casa; ignorar o conjugue e os filhos; desprezar o conjugue não cumprindo com retribuição afetiva e sexual;
  3. A traição pode ser dissimulada ou descarada sob a forma de ocultação de: telefone, contas de e-mail e presença maliciosa em redes sociais; consumo de pornografia; jogo; vícios que afetam a economia do lar.
Todas estas formas de desgaste no relacionamento causam uma grande angústia no conjugue que se dedica, que faz tudo para agradar, que ama, mas nunca é correspondido. Este amor sem retorno quase sempre acaba por gerar na vítima um sentimento de culpa por qualquer coisa que “fez de errado” mas que não sabe bem o que é. O agressor tira proveito ainda maior alimentando-se desse sentimento pois procura explorá-lo ainda mais provocando no seu conjugue ou filhos, um sentimento de “fracassado total”, “farrapo”, alguém que “não presta para nada”.

Este sentimento é mais evidente nas crianças vítimas de abusos. Elas desenvolvem sentimentos confusos de culpa profundos e ficam afetadas a longo prazo com perturbações comparáveis a "stress de guerra". Estes sentimentos encontram também terreno fértil em crianças cujos pais discutem muito. A culpa, esse sentimento de indignidade, remorso e auto censura, chama após si no decorrer do tempo um desgaste emocional todas as consequências que se podem diagnosticar: insónias, tristeza, depressão, quebra de rendimento no trabalho, doenças várias, desordens compulsivas e suicídio.

A culpa é um sentimento de indignidade, remorso e auto censura. A culpa vem na sequência de muita raiva acumulada dentro da pessoa e pode revelar-se progressivamente e discretamente, como de repente pode aparecer como uma explosão incontrolável.

Porque as pessoas têm dificuldade em libertar-se do sentimento de culpa.


Naturalmente que não estamos a falar de uma culpa adquirida como resultado de um ato cometido de forma deliberada ou acidental. Esta culpa, uma vez reconhecida, pode ser reparada ou ressarcida através do perdão ou de uma indemnização. Ainda que tivesse sido melhor que o estrago não tivesse acontecido, o facto é que aconteceu e as suas consequências têm muitas variáveis e algumas delas podem mudar completamente a nossa vida.

Estamos, sim, a falar de uma culpa infligida à vítima. Uma culpa que não lhe pertence, que lhe foi imposta por repetidos maus tratos psíquicos ao longo do tempo em que a pessoa perdeu todas as defesas relacionadas com a sua autoestima e valor pessoal. O agressor culpa a sua vítima como desculpa para o seu comportamento.

  • Se eu bebo é porque TU não me fazes feliz.
  • Se não te procuro é porque TU não és mais a mesma pessoa.
  • Se temos dívidas é porque TU não tens emprego.

Aponto algumas razões para esta dificuldade:


Medo.

O agressor tem à sua disposição variadíssimas ferramentas para amedrontar a sua vítima de quem, de quem, por outro lado, ele depende de variadas formas. O agressor ameaça de diversas formas o seu conjugue ou outro familiar. Ameaça que maltrata as crianças ou que se suicida. Por outro lado, se a vítima depende economicamente do agressor terá que somar ainda o pavor de não ter para onde ir ou o que comer no dia seguinte.

Vergonha.

A vítima tem muita vergonha da sua situação precária. Esta condicionada em grande parte pela família, pelos amigos e porventura pela sua comunidade religiosa. Tem vergonha de que os seus pais saibam e fiquem tristes pois este por sua vez já são idosos e não desejam que os seus filhos sofram. Porém o cenário mais vulgar é que todos já se aperceberam do drama, pelo menos em parte.

Preocupação excessiva com a opinião dos outros.

A vítima vive de tal forma numa teia social e está tão confusa que não lhe é possível discernir corretamente as suas prioridades. As opiniões dos outros são confusas e desprovidas do conhecimento em concreto que toda da situação envolve. Se por um lado, algumas pessoas opinam de forma incompleta, por outro, a vítima procura a todo o susto que outras não saibam da situação pois o medo e a vergonha predominam mais do que tudo o resto.

Dependência.

São vulgares os casos em que a vítima está dependente do teto e da mesa do agressor. O cenário agrava-se quando a pessoa tem filhos e além da dependência física, há ainda a afetividade e memórias que têm raízes profundas.

Cultura.

Destacamos a cultura social e religiosa. Socialmente uma separação ou um divórcio ainda é uma coisa impensável em algumas regiões do país mas num contexto mais urbano as crenças religiosas das pessoas levam-nas a encobrir o sofrimento e muitos sacerdotes não estão preparados para lidar com pessoas com este sofrimento. Recomendam por isso, paciência, um espírito sacrificial, etc… mas não fazem nada para confrontar o agressor com a uma mudança e adotam uma postura conformista a que chamam de “cristã” para salvar um casamento, seja a que preço for. A vítima, nestes contextos, fica completamente desamparada e confusa.

Consciência de responsabilidade para com o agressor.

A vítima, ainda na posse de faculdades mentais saudáveis, sabe que se abandonar o agressor ele irá afundar-se na miséria, adoecer e eventualmente morrer. A compaixão da vítima pelo agressor é de tal intensidade que somada com a sua baixa autoestima acaba por provocar um inferno cada vez maior e mais atormentador.

Co-dependência.

Esta é a fase terminal de um caos em que ambos, ou a família se envolveu. A vítima conformou-se à sua vida miserável de que "é culpada de tudo e mais alguma coisa" e segue rumo ao incerto numa senda de sofrimento e terror. Ele ou ela, gasta e ele, ou ela, paga; ... suja, bate, estraga, ofende, trai, viola, e o outro: limpa, conserta, desculpa, sujeita-se, sofre. A co-dependência gera na vítima uma habituação que toma o lugar da realização pessoal, o seu objectivo de vida passou a ser a outra pessoa; deixou de ser ela própria e passou a viver intensamente a vida do outro nos aspetos em que as responsabilidades do agressor não são assumidas. É o caso de uma mãe que todos os dias prepara o pequeno almoço e faz a cama do seu filho toxicodependente que já tem 40 anos de idade...


O amor é sofredor? Sim. E o amor não se porta com indecência? Claro! O amor e a decência são obrigações comuns e não apenas de um só. Mas até onde podemos consentir com o sofrimento infligido por um carrasco indecente?

A restauração do agressor e a dignidade humana da vítima.


Há agressores que têm “a grande lata” de gostar que o seu conjugue ande na igreja porque assim sentem-se seguros. Se o conjugue vítima for uma pessoa piedosa, “por amor de Deus” e para “cumprir a Bíblia” nunca se irá separar e tomar uma atitude que ponha um fim ao prazer indecente (do agressor).

Somos cristãos mas também somos humanos. Fomos chamados para ser separados para Deus, cumpridores dos seus preceitos e devemos até amar os inimigos. Então, se vivermos isso de uma forma autêntica também devemos assumir com a mesma com firmeza o imperativo de preservarmos a nossa dignidade e vida com igual responsabilidade.

Não há qualquer intenção com este artigo de liberalizar uma separação ou privilegiar o divórcio. Lembramos que o mesmo sermão da montanha que deu origem a este texto penaliza aqueles que levianamente abandonam as suas mulheres para se juntarem com outras. Todo o ensino bíblico é coerente nesta matéria e se assim não fosse a Bíblia decerto que não seria a Palavra de Deus.

O agressor tem direito à sua restauração. A vítima tem direito à sua liberdade. Ambos, se de novo o desejarem, têm direito às bem-aventuranças prometidas.

As igrejas cristãs evangélicas hoje em dia podem dispor de inúmeros recursos para apoiar famílias em risco de divórcio, seja por motivo de incompatibilidades ou por fatores relacionados com agressores versus vítimas.

Para terminar, mas sem concluir, este tema tão complexo, se você é vítima de agressão, seja de que tipo for, conforme o que foi descrito acima ou diferente disso, não fique sozinho/a com o seu problema. Procure ajuda a fim de se livrar desse sofrimento. Reúna o máximo possível de informação sobre a causa que está por detrás de um comportamento agressivo e que prejudica seriamente a sua saúde, o seu bem-estar e a sua própria vida. Deus quer libertar tanto o agressor como restaurar a sua dignidade como pessoa.

Que Deus abençoe a sua vida.

Samuel Dias

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