Temos uma forte tendência para julgar os outros. Faz parte da nossa natureza primária e da nossa herança religiosa católica e judaica.
Mas Jesus veio para nos mostrar uma outra dimensão no relacionamento de uns com os outros. O confronto de Jesus com os fariseus nesta matéria é um assunto dominante e que contrasta com as nossas atitudes muitas das vezes mais farisaicas que cristãs.
Os judeus viam o mundo a duas dimensões: eles, os escolhidos, e os outros, os alienados. Jesus mostrou-lhes outra dimensão. Está em Mateus 5:22 o primeiro registo das citações de Jesus relativamente ao “irmão”: “Eu, porém, vos digo que todo aquele que se encolerizar contra seu irmão, será réu de juízo; e quem disser a seu irmão: Raca, será réu diante do sinédrio; e quem lhe disser: Tolo, será réu do fogo do inferno.”
Para contrariar um comportamento de exclusão tão enraizado a solução de Jesus era radical: juízo para os que ofendiam um irmão e demonstração de amor para os inimigos.
A sociedade judaica estava também dividida em dois géneros: homens e mulheres. A dificuldade para uma mulher era tal fazia com que elas se acautelassem o máximo para não terem que passar por um vexame em público. Veja este exemplo: “E eis que certa mulher, que havia doze anos padecia de uma hemorragia, chegou por detrás dele e tocou-lhe a orla do manto; porque dizia consigo: Se eu tão-somente lhe tocar no manto, ficarei sã.” (Mateus 9:20) A dificuldade da mulher em se aproximar de um Rabi é também notória em outros textos.
Depois de excluir os estrangeiros e as mulheres da classe dos privilegiados há ainda uma outra classe do género masculino que importa colocar de parte: são os pecadores e os cobradores de impostos. Vejamos: “Ora, estando ele à mesa em casa, eis que chegaram muitos publicanos e pecadores, e se reclinaram à mesa juntamente com Jesus e seus discípulos. E os fariseus, vendo isso, perguntavam aos discípulos: Por que come o vosso Mestre com publicanos e pecadores?” Mateus 9:10,11
Outro exemplo: “O fariseu, de pé, assim orava consigo mesmo: Ó Deus, graças te dou que não sou como os demais homens, roubadores, injustos, adúlteros, nem ainda com este publicano.” Lucas 8:18.
Parece-me que, neste ponto, já podemos concluir que ainda hoje continuamos rodeados de pessoas cuja única grande vocação é excluir pessoas.
No livro João no capítulo 9 uma família judaica estava com problemas e por isso não cabiam naquela faixa de privilegiados pois tinham uma criança cega. Repare na pergunta formatada dos discípulos de Jesus: “Rabi, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego?” Tudo naquela sociedade funcionava em torno de abençoados e amaldiçoados. O direito à existência dos outros foi remetido como que para uma tela cinematográfica: nós os justos prevaleceremos e vós os maus tereis que morrer, ou; tem de haver sempre um culpado por alguma coisa que esteja errado! Tudo funcionava à volta de abençoados e amaldiçoados, como nos filmes, tem que haver um mau e um bom. Quem tivesse um problema tinha que ter qualquer culpa. Seria como as rotinas diárias de alguém que precisa de ter sempre contra quem lutar para poder demonstrar que é melhor que o outro, ou esse dia não é um bom dia.
E como se todos estes preconceitos não bastassem ainda havia um legalismo apavorante de mais de seiscentas regras para observar quem iam muito além do que tinha sido determinado por Moisés. É neste cenário de privilegiados que Jesus elabora os seus discursos de confronto e que culminam na sua condenação à morte. “Então chegaram a Jesus uns fariseus e escribas vindos de Jerusalém, e lhe perguntaram: Por que transgridem os teus discípulos a tradição dos anciãos? pois não lavam as mãos, quando comem. Ele, porém, respondendo, disse-lhes: E vós, por que transgredis o mandamento de Deus por causa da vossa tradição?” Mateus 15:1,3
A situação chega ao cúmulo de se atreverem a fazer emendas e “melhoramentos” da Lei. Vejamos: “Ora, se teu irmão pecar, vai, e repreende-o entre ti e ele só; se te ouvir, terás ganho teu irmão; mas se não te ouvir, leva ainda contigo um ou dois, para que pela boca de duas ou três testemunhas toda palavra seja confirmada. Se recusar ouvi-los, di-lo à igreja; e, se também recusar ouvir a igreja, considera-o como gentio e publicano.” Mateus 18:15
Vamos por partes:
1. “Ora, se teu irmão pecar, vai, e repreende-o entre ti e ele só; se te ouvir, terás ganho teu irmão; CORRECTO!
2. “Ora mas se não te ouvir, leva ainda contigo um ou dois, para que pela boca de duas ou três testemunhas toda palavra seja confirmada; CORRECTO!
3. Se recusar ouvi-los, di-lo à igreja; e, se também recusar ouvir a igreja, considera-o como gentio e publicano.” ERRADO!
Errado porquê? Porque simplesmente isso não está escrito na Lei! Na Lei está escrito “ninguém será julgado senão pela boca de duas testemunhas” (Deuteronómio 19:15) e ponto final. Mas não foi Jesus quem disse também o verso 17? Foi. Mas Jesus disse-o referindo-se à prática deles e não como algo que fosse um exercício correto! Ou seja, Jesus fez uma citação da Lei e colou de seguida uma citação do que eles tinham acrescentado à Lei!
Lamentavelmente muitos fazem uso deste texto para expor e julgar pessoas. Na verdade o empenho desses nem sequer é ouvir a pessoa, nem procurar a restauração com ajuda de uma ou duas testemunhas. O único objectivo é a "chicória" pública com o mesmo empenho e a obsessão destes fariseus.
A seguir Jesus diz: “Na verdade…”, ou seja, “tenho outra coisa a dizer sobre isto”. Noutras ocasiões Jesus emenda com “Porém eu vos digo..” Mais: se isto fosse ensino, então Jesus teria proferido uma contradição com o que disse imediatamente atrás e o que disse imediatamente à frente. Também, Pedro, que habitualmente fazia afirmações públicas com “a cabeça no ar”, sem entender bem as coisas que Jesus dizia, desta vez não desfoca do sentido inicial – o perdão. Pedro consegue distinguir a alusão de Jesus do ensino que ele quer dar. Tanto mais que, incomodado pergunta: “Senhor, até quantas vezes perdoarei? Até sete?” (outra regra: sete!!!)
No texto anterior, ou seja, no contexto, o ensino de Jesus é sobre noventa e nove ovelhas e uma que precisa de ser encontrada. No texto seguinte encontramos um Pedro atento à mensagem sobre aceitação do pecador ainda que formatado com um certo limite para perdoar o ofensor. Em conclusão, os fariseus tinham “aperfeiçoado” a lei para “excluir”, quando a razão para a qual a mesma tinha sido dada, era para “incluir”. Jesus disse que as tradições invalidavam a lei.
Finalmente temos ainda um grupo de extra-terrestres que desconcertava completamente os fariseus. Onde é que se poderiam encaixar os samaritanos? Seriam gentios ou pecadores? Os samaritanos não se encaixavam em lado nenhum. Eram descendentes de Abraão, criam no Messias que viria, criam no Pentateuco, mas não tinham Jerusalém como a sua capital religiosa e adoravam no monte Gerizim. Os samaritanos não cabiam em lado nenhum do seu já vasto preconceito; eram uma espécie de habitantes de outro planeta.
Em Lucas 10:25-37 Jesus contou uma história sobre um Samaritano em resposta a uma pergunta de um doutor da Lei que se queria justificar das suas faltas.
Mas pare um pouco por favor: O Mestre não disse que o Samaritano era “bom” e Lucas não disse que Jesus contou uma parábola, pelo que, podemos estar diante de um episódio real. Abra a sua Bíblia e confira. Jesus conta então uma história sobre um Sacerdote e um Levita que passam de largo diante de um homem angustiado que precisava de ajuda. Os “justos” desprezaram uma boa oportunidade de provar a sua bondade diante dos homens e de Deus, e para cúmulo maior, o sobrevivente terá contado a história dizendo a todos que quem o ajudou foi um samaritano (alienado). É caso para dizer que o desgraçado sobreviveu para contar a história.
Os episódios de confronto de Jesus com religiosos (incluindo os seus discípulos) que gostavam de excluir de foram muitos. Temos também os conhecidos casos da mulher siro-fenícia, a mulher apanhada em adultério e a mulher samaritana, e às tantas, tantos outros que nem couberam nos escritos.
O caso da mulher siro-fenícia reproduz um caso interessante de uma resposta de Jesus aparentemente concordante com este síndroma de exclusão praticado pelos seus patriotas: “Não é bom pegar no pão dos filhos e deitá-lo aos cachorrinhos”! Quantas vezes, mas quantas vezes mesmo, a mulher não teria já ouvido esta afirmação de judeus que tanto a machucava. Jesus aplicou-lhe o mesmo dito popular que tão severamente ofendia os gentios tratando-os como cães desprezíveis. Mas a mulher percebeu a ironia de Jesus porque, decerto, sabia que estava a lidar com um judeu diferente, e respondeu prontamente: “Sim Senhor, mas também os cachorrinhos comem das migalhas que caiem das mesas dos seus senhores” – mas que determinação, humildade e fé impressionantes podemos encontrar no exemplo desta mulher. (Mateus 15:22-28)
À tentativa de apedrejamento da mulher apanhada em flagrante não temos qualquer narrativa a respeito do homem com quem ela estava a prevaricar na Lei. Temos, por outro lado, uma das frases mais populares de Jesus e menos praticada por nós: “Aquele que está sem pecado que atire a primeira pedra”.
O encontro com a mulher samaritana é um clássico apaixonante: Jesus manda doze homens à cidade comprar comida para treze! Habitualmente Jesus costumava ficar com alguns discípulos como aconteceu algumas vezes com Pedro, Tiago e João, mas desta vez Jesus quis ficar sozinho porque sabia que se alguém ficasse por perto só atrapalharia. A evidência desta suspeita confirma-se no versículo 27 (de João 4) onde diz que “…vieram os seus discípulos, e se admiravam de que estivesse falando com uma mulher;…” Os discípulos admiraram-se? A história termina com uma mulher recuperada para a sociedade e um Mestre sem fome absolutamente comprometido com outro tipo de alimento para a humanidade.
"Cristãos" em muitas igrejas continuam a ter um comportamento de exclusão por força das suas tradições e má interpretação bíblica. Arvoram-se em arautos da graça mas continuam a excluir "adúlteros", "samaritanos", "cegos" e "publicanos". De acordo com Tiago eles são "homicidas"! Ao excluir pessoas, matam relacionamentos e a oportunidade do "prevaricador" ter uma real aceitação e ser transformado pela graça (favor imerecido) de Deus.Tiago 2:11 "Porque o mesmo que disse: Não adulterarás, também disse: Não matarás. Ora, se não cometes adultério, mas és homicida, te hás tornado transgressor da lei". .... (vs 13): "Porque o juízo será sem misericórdia para aquele que não usou de misericórdia; a misericórdia triunfa sobre o juízo."
Quem não procura seguir o exemplo de Jesus não pode ser considerado "cristão". Eles fazem lembrar Martinho Lutero, que descobrindo e discursando sobre coisas tão belas e excelentes sobre a graça, nas suas ações de excesso de zelo foi autor de mais um periodo cinzento na história da cristandade, promovendo a morte de quem se opunham às suas descobertas.
Não saia daqui sem fazer a sua própria reflexão sobre o seu comportamento relativamente aos outros. Que tipo de pessoa eu sou? Como os fariseus que excluem ou como Jesus que inclui?
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