quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Cinco dias em Cabaret, Haiti


A maioria dos passageiros que ia naquele voo era haitiana. Levavam uma carga escondida que não declararam na alfândega. Quando o avião se inclinou para descer e pela janela espreitavam uma cidade quase metade desfeita em escombros, descobrimos o que levavam secretamente: DOR. Via-se nos seus olhos.
“Onde vamos ficar John?”, para preencher os papéis… “Em Cabaret”. Como pensei que estava a brincar comigo não escrevi nada. A manga encostou ao avião e saímos para um túnel recentemente construído. O ar condicionado não produzia o necessário e quando saímos daquele acesso, em vez de entrar no edifício para sair para a rua, entrámos num autocarro para entrar de novo na pista do aeroporto. Foi o primeiro contacto com as consequências do abalo que ocorreu no dia 12 de Janeiro de 2010. O edifício está comprometido e fomos para um hangar que servia provisoriamente de controlo de entrada no país e ao mesmo tempo para a recolha das malas. Não havia passadeira rolante. As malas eram ali depositadas no chão e aos gritos apontávamos para o objecto que julgávamos ser o nosso.


Dia 1


À saída do hangar estavam os ajudantes com camisa cinzenta que deviam ser em quantidade superior ao número de passageiros que tomavam conta de nós aos pares. Não larguei a minha bagagem da mão e por isso assim que saí para fora do gradeamento vermelho sujei no esgoto que corria a céu aberto os meus sapatos de camurça castanhos que comprei em Miami por 19 dólares. Ali ficámos entre aquele riacho e a estrada, com as malas e os três ajudantes de cinzento que ficaram a tomar conta de nós, e das nossas malas.

O trânsito era o caos. Táxis coloridos desenhados com um tom maioritariamente vermelho com pessoas encaixotadas lá dentro e outros pendurados nas traseiras a usufruir do ar poluído, viaturas militares, camiões de transporte de comida e viaturas das mais diversas organizações. No meio da confusão um polícia corre atrás de alguém que corria atrás de roda de automóvel com jante especial a rebolar à sua frente. Acho que aquela roda deve ter “caído” de alguma viatura de caixa aberta e o cidadão estava a levá-la para um lugar mais seguro.

Enquanto aproveitávamos o calor do sol do Haiti o Pr. John Amaral lá conseguiu falar ao telefone com o Pr. Clergio Maxeu que afinal estava dentro do hangar enquanto nós o esperávamos cá fora. O Pr. Clergio estava disfarçado com uma camisa cinzenta.

Esperámos mais algum tempo à velocidade dos relógios do Haiti pelo nosso motorista (que será sempre o mesmo até ao fim desta história), o qual depois de se ter desembaraçado daquele trânsito louco conseguiu por fim chegar. Distribuídas e discutidas que foram as gorjetas lá nos desembaraçámos dos ajudantes e entramos para o JEEP vermelho com ar-condicionado. Debaixo dos nossos pés estava uma manta que mantinha os nossos pés bem quentinhos. E partimos lentamente por aquela cidade fora.

Fomos almoçar num dos poucos hotéis que sobraram na cidade. Depois o Pr. Clergio levou-nos a alguns lugares e os mais emblemáticos são sem dúvida o Palácio do Presidente e a Sé Catedral, ambos destruídos. O Arcebispo do Haiti sucumbiu na derrocada.

O cenário de tendas brancas não tardou a chegar assim como os destroços de casas “embolachadas”, inclinadas, rachadas e comprometidas. 10 milhões de habitantes, 1 milhão de desalojados. O recorde de angariação de fundos deixa-nos a todos entusiasmados e na parte que nos toca também ficamos felizes por termos feito parte disso. Percebe-se claramente a necessidade imperativa de resolver os problemas imediatos de alimentação e cuidados básicos de saúde, mas como será reposta a normalidade de um povo que foi abandonado e vive abandonado, é que todos ficamos na expectativa de ver o que dá.

No caminho para Cabaret um camião estava no centro da estrada avariado. Nunca vi ninguém conduzir tão mal. O nosso condutor tinha sempre prioridade. Sei que há algumas diferenças no código da estrada naqueles países mas claramente dava impressão que ele não conhecia regra nenhum a não ser que tinha de conduzir pela direita. Para ultrapassar era por onde podia.

http://www.maplandia.com/haiti/nord/cabaret/

Não imaginava que o nosso destino fosse tão longe da capital. Isso ia dificultar os contactos que desejava ter no Haiti. O culto veio a seguir num ambiente de muito som com bons músicos e vozes que não são de todo estranhas aos nossos ouvidos. Algumas letras eram as mesmas que conhecemos embora fossem em Francês. Os jovens aproveitavam para de vez em quando irem ao centro da sala por os seus telemóveis a carregar, que como se sabe tornou-se um bem primeira necessidade em todas as sociedades, nas ricas e nas pobres. Embora os aparelhos não fossem grandes máquinas não sei como conseguem dinheiro para usufruírem da possibilidade de os usar, com tantas coisas mais úteis onde gastar o dinheiro.

Fomos para o hotel e o Pr. John ficou admirado pelas condições da estrada que nos levava ao hotel. Ainda cheirava a alcatrão recentemente colocado. Foi necessário concertar aquela estrada para permitir a passagem da assistência humanitária.

Quando chegámos, claro, foi preciso dar o nome. O Pr. Clergio estava a discutir com o recepcionista porque o preço tinha subido de um dia para o outro. “Isto é sempre assim!” diz-nos o Pr. John incomodado com a situação. O ar condicionado trabalhou e o conforto estava num nível aceitável. O preço não.

O Pr. Amaral abriu uma das suas malas e reparou que a esposa lhe tinha enviado um “sleep-bag” (saco cama). Investigou mais um pouco e disse: “Esta mala não é minha!” Era exactamente igual eu também tinha carregado com ela. A mala tinha uma tenda pequena, um toldo, vitaminas e medicamentos. Alguém ficou sem o material de trabalho e sem local para dormir.

Dia 2

www.cachurch.org

Saímos pelas oito horas da manhã para tomar o pequeno-almoço. Conversamos algumas coisas sobre o trabalho da Christian Assembly, de que o John Amaral é Pastor presidente. As Igrejas são um grande suporte educacional daquele povo. O governo autoriza o seu registo desde que elas assumam a responsabilidade de uma escola e do pagamento do salário do professor. De facto, só vi Igrejas Evangélicas por todo o lado, e a escola que visitámos estava sem uso por estar danificada. Mas aquele tipo de espaço que nos é familiar, de um edifício com um espaço cercado por uma vedação, não vi nenhum. Perguntei se havia ensino público, sim, mas apenas acessível para os mais ricos. Relativamente ao apoio ás Igrejas do Haiti fiquei com a sensação de que é muito importante apoiá-las directamente e não apenas as organizações, contudo, precisa de haver supervisão por parte de quem financia. Se pelo menos duas vezes por ano não se for verificar onde foi aplicado o investimento, não haverá desenvolvimento. Se houver um missionário ocidental, da América, Europa ou do Brasil a supervisionar muito melhor. “Na Índia é a mesma coisa” disse o Pr. Gabriel. Eles não gostam que façamos isso mas na verdade não há alternativa.

A conversa estava agradável e as tantas dei conta que já passava das onze e perguntei quando é que iríamos sair dali para fora. O Pr. John disse que tinha marcado as nove... disse também que era sempre assim por causa dos “imprevistos”. Passava do meio-dia quando saímos de lá. Só então é que tentei contactar o Valery do Desafio Miqueias. Já tinha percebido que não ia poder estar com o Pr. Calixte, presidente das Assembleias de Deus do Haiti. Tomei por opção o Desafio Miqueias porque sabia que o Pr. Paulo Pascoal, o Pr. Josué Ponte e mais alguns pastores que iam à República Dominicana e estavam a planear ir lá.

http://viagensdojosue.blogspot.com/

Antes de sairmos o Pr. Clergio disse que o Pastor Rodrigue estava em Cabaret à espera e que queira falar com ele. O Pr. John Amaral disse que não tinha marcado nada e que não tinha trazido nada para ele e que tínhamos outro programa.

Entre o caminho do hotel e Cabaret visitamos a Igreja de Williamson. É um apelido Haitiano. Começaram a cantar quando chegámos no carro e percebemos isso. Foi ali que me desembaracei dos chocolates que levava comigo para as crianças pois o calor que fazia já me tinha feito perceber que se não os desse iriam se estragar no carro. O lugar é pobre e seco. O Pr. John Amaral comentou: “Agora já estou a ver para onde foi o dinheiro da última emergência…”, enquanto olhava para o edifício de tijolo de cimento e tecto de chapas onduladas de zinco. O chão era de terra batida, só no púlpito havia cimento.

No caminho para Cabaret o Pr. Gabriel reparou que saia fumo pela chave de ignição do carro. Não devia ser grave…

Atrasos e mudanças de agenda não são propriamente coisas saudáveis para as nossas tripas mas o Paciente John lá teve que ir falar com o Pr. Rodrigue para a casa do Pastor Clergio enquanto eu e o Pr. Gabriel nos abrigámos do calor na Igreja, onde o povo continuava cantava e orava. Eram cerca de duas horas da tarde. Estava muito calor. E nada de almoço.

Foi ali que me quis desembaraçar da minha segunda carga. Já tinha dito ao Pr. Gabriel que lhe entregaria o dinheiro da nossa igreja para ele o distribuir como entendesse. Levava euros. Confesso estava um pouco envergonhado com a quantia que levava. Tinha tido um percalço antes da viagem com a minha carteira e tinha cancelado os cartões de acesso às contas da Cruz Azul e da Igreja, e por isso o que tinha conseguido levantar de uma conta minha era muito pouco diante da dimensão da necessidade que estava diante dos meus olhos.

Estava com a mão na massa quando o Pr. John chega com um constrangimento na sua expressão e pede ao Pr. Gabriel 50 dólares para dar ao Pr. Rodrigue porque a sua casa e instalações da igreja tinham sido destruídas, a sua filha mais nova tinha morrido e ele estava a viver na rua com a família. Foi assim que os nossos euros foram para aquele destino. Foi para a família da qual tínhamos dado notícia na nossa comunidade de que a um Pastor tinha morrido uma filha. Nunca mais me vou esquecer, quando chegámos à casa do Pastor enquanto o John Amaral estava ao telefone, daquele nariz largo e sorriso rasgado que vi rodeando o carro como de quem acabava de ver o seu libertador chegar.. Nunca mais o vi.

A seguir o Pr. Clergio anunciou que nos iria levar de volta ao hotel para “descansar” como se isso fosse algo que quiséssemos fazer. Portanto, o encontro com o Valery estava comprometido. Quando consegui falar com o Valery do telefone mágico que o John Amaral tinha comprado antes de sairmos de Fall River, com um tarifário que funciona até na Lua, além de saber que a distância a que estávamos era um obstáculo complicado e pelos vistos combinar uma hora com alguém era uma questão de “se der deu”. Perguntei ao Valery se poderia vir a Cabaret ou estar no culto à noite e isso não era possível para ele. A possibilidade ficou remetida para um encontro no aeroporto quando estivéssemos para sair mas nem me atrevi a tentar pelo que acabei verificar que do mesmo modo não seria possível.

Assim fomos forçados a descansar e a almoçar a meio da tarde. Fui até à água tirar umas fotos bonitas de um espaço turístico dos poucos vistos naquela ilha e nada mais. O Pr. John ficou todo feliz por ter conseguido um fio que lhe ligou o computador ao resto do planeta para poder dar conta dos problemas do resto do mundo, como que se os que já havia por ali ainda não lhe chegassem.

Quando anoiteceu foram-nos buscar para o culto. Já não interessa a hora a que isso foi. No caminho vi uma Igreja reunida num grande descampado. Por estar frustrado com a falta de tempo para ver o mais possível disse ao Pr. Gabriel que queria lá ir espreitar. Pedi ao condutor que fosse comigo e de facto era muito perto. Estavam umas 500 a 600 pessoas sentadas naquele descampado enquanto alguém pregava todo entusiasmado sem que nada eu pudesse perceber. Um irmão da Christian Assembly acompanhou-me em todo o tempo enquanto filmei e fotografei. É claro que é um registo digital da pior qualidade possível, mas é uma prova que me aqueceu o coração. Havia cenários daqueles espalhados por toda aquela nação. Um povo que não se esqueceu do Criador dos céus e da terra, Aquele que lhes traçou um destino, “mesmo que a terra trema e os montes se abalem” nada lhes removerá o temor que lhes foi implantado no coração.

A CNN, mais conhecida no meio evangélico americano pela alcunha de “burra de Balaão”, já tinha dado notícia que era assim. Os feiticeiros haitianos estavam sem clientes. O diabo perdeu adeptos e a Palavra de Deus foi o consolo que o povo procurou na hora da maior aflição.

Apesar de estar acompanhado por uma pessoa de confiança, em nenhum momento me senti ameaçado. Aquela gente sabia que um branco ali no meio daquela meia dúzia de lâmpadas não estava ali para passear. Tinha um outra missão a cumprir ainda que eles não sabiam bem qual era, mas sabiam que era de bem.

O culto na Christian Assembly foi idêntico ao da noite anterior. Também fiz negócio com um jovem da JIH. Eu queria trazer como recordação uma nota do Haiti e pedi-lhe para ele me mostrar as notas que ele tinha. Mostrou-me uma de 200 dólares haitianos e perguntei-lhe quanto é que valia em dólares. Mais ou menos 3 dólares, respondeu. Ele perguntou-me se eu queria a nota e eu disse que sim. A seguir disse que tinha troco para lhe dar. Dei-lhe 20.

wicky201@yahoo.fr (também fala inglês)

Discretamente convoquei algumas crianças para lhes entregar gomas e com a mesma discrição se acercaram de mim. Estranhei aquele comportamento tão disciplinado. Mesmo as que estavam mais distantes de olhos perspicazes no que se estava a passar, não saíram do seu lugar sem que as chamasse. O Pr. John Amaral pregou. Quando saímos distribuí pelas crianças o resto das gomas que levava comigo. E assim nos despedimos da Igreja no Haiti.

Dia 3

Quase não dormi nessa noite no hotel. Estava muito inquieto com tudo o que tinha visto e vivido. Às sete da manhã já estávamos prontos. O condutor chegou no Jeep vermelho por volta das 08:30 com o Pastor também. Tinha tido um “imprevisto” mas tínhamos bastante tempo para chegar ao aeroporto.

No caminho para o aeroporto parámos naquele descampado onde no dia anterior tinha visto um culto ao ar livre. O palco com a bateria acústica ainda lá estavam e os bancos também. Os bancos eram as pedras dos destroços das instalações dessa igreja que ao lado estava completamente destruída. Tirámos fotos e filmei.

E chegámos cedo ao aeroporto. Fomos para o meio daquela confusão, caos de transportadores de malas e conseguimos chegar ao balcão da América Airlines. O edifício de entrada também está comprometido embora com remendos de ferro aparafusados na parede para evitar que nos caísse em cima. O espaço era exímio. Por isso só dá para perceber porque só dá para ter uma companhia de aviação civil lá. Contentores improvisados do lado de fora faziam a logística de apoio aos passageiros que entravam.

A empregada da América Airlines pediu o meu visto para a América. Não o tinha a comigo como não o tinha em Lisboa quando saí para Boston e com todas as explicações dadas, dali não passei. Aconselharam-me para ir resolver o problema à embaixada americana ou preencher um formulário na net. O John ainda abriu o portátil mas não havia rede. Então fomos para a embaixada e o Pr. Gabriel ficou no aeroporto.

Como precisávamos de um táxi um haitiano levou-nos para um carro velho mas ele não era o condutor. Fisguei outro carro para nos levar e já estávamos para ir ter com outro o condutor quando um que sabia conduzir vem a correr disparado. Claro que não podiam perder a oportunidade de fazer o dia. E para variar a embaixada ficava no fim do mundo como se aquilo já não o fosse. Corremos de uma porta para a outra até que ficámos desesperados numa delas à espera que alguém a quem pedimos viesse de lá com uma resposta. Mas nada.

O Pr. John Amaral entretanto tenta falar com o Pr. Clergio que demorava em atender. Quando o consegue fazer diz-me que “vamos perder esse avião”. Digo-lhe para se ir embora. Eram talvez 11:30. Não valia a pena ele ficar lá a fazer mais despesa quando a minha obrigação era resolver um problema que era meu. Além do mais eu precisava deles fora daquela ilha para me resolver a passagem dali para fora. Claro que não havia ali agências que pudessem resolver isso. O aeroporto estava numa confusão por demais já conhecida.

Foi um excesso de confiança da minha parte. Até podíamos ter resolvido aquilo durante os dias que estive nos U.S.A. Uma viagem que levou semanas a planear e a encontrar lugar na AA, agora precisava de um plano B de um momento para o outro. Finalmente lá me chamaram para dentro mas não passei do balcão de atendimento. Falei ao telefone com uma senhora que me fez várias perguntas e depois o telefone acabou nas mãos no meu colega segurança haitiano que lhe passou o meu nome completo com o passaporte na mão. Passou mais algum tempo, trouxeram-lhe uns cartões, um dos quais ele me deu, explicando-me que tinha de consultar a internet para preencher um formulário. Agradeci dizendo que foi uma “grande ajuda” e fui para a porta outra vez à espera do Pastor Clergio. Deitei-me na relva com as costas em cima da mochila, privilégio que só me foi concedido a mim pois os que tentavam acampar ali eram de imediato espantados pelos seguranças.

Eram 12:20 quando vi certo avião elevar-se no ar. Sem mim. É uma sensação de perda muito estranha e desagradável – Miami, Boston, Madrid, Lisboa – perdi quatro voos. E por ali fiquei a contemplar aquele movimento doido de viaturas militares, de abastecimento e chaimites brancos da UN. E também vi passar um carro com o autocolante da TEARFUND que à segunda passagem pela minha frente, levantei-me, saquei do telemóvel e disparei, mesmo depois de me dizerem que não podia tirar fotos ali. A Tearfund é a organização para onde o Desafio Miqueias tinha enviado o dinheiro. http://www.tearfund.org/

O Pastor Clergio, com a sua camisa cinzenta, apareceu logo de seguida quase ás 5 da tarde. Eu estava irritado demais. Ele não conseguiu entender, como eu também não, porque é que entrei na América sem visto uma vez e agora não me tinham deixado passar. Lá fomos à procura de uma casa que tivesse internet noutra viatura de dois lugares à frente onde sentámos três com mais dois em cima atrás na caixa aberta. A mala que veio por engano parar as mãos do Pr. John lá estava. Faltou um bilhete qualquer para fazer a devolução da mala, disse-me ele.

Entrei numa casa muito pobre que mais parecia um… lugar estranho. Ali ficou a jovem em frente ao computador sem o querer ligar enquanto falava com o Pastor. Acabei por saber que ela pediu 15 dólares para pôr aquilo a funcionar. Finalmente lá foi buscar o pequeno gerador que depois muitas pedaladas começou finalmente a roncar. Além de eu ainda estar com os nervos à flor da pele o ecrã do computador cintilava com umas quatro faixas verticais que dificultavam a visualização. As frequências do gerador e computador não estavam ajustadas ou faltava algum filtro de corrente. O que é certo é que a internet até abriu mas eu não consegui encontrar o caminho para o formulário. Desisti. Não sei se o Pastor lhe pagou aquele valor. Próxima paragem: embaixada de França. Entre Inglaterra e França eles escolheram França. Tanto me fazia.

A embaixada de França ficava no outro lado do fim do mundo. Tomei consciência do enorme tamanho daquela cidade e da enorme devastação que ainda não tinha visto. Casas, casas, e mais casas convertidas em entulho. O esgoto fedia em banda larga pelas ruas abaixo. O cheiro era nauseabundo. Mas também vi sinais positivos, percebia-se claramente que as ruas estavam a ser desimpedidas do entulho. O povo amontoava o lixo e o entulho, depois máquinas e camiões recolhiam-no.

Os seguranças da embaixada francesa eram do mais eficiente que já tinha visto no ramo. Por fim lá chamaram um soldado francês a quem disse que precisava de ajuda para sair do país mas o rapaz disse que ali era a embaixada e que o consulado já tinha fechado. E tratou de me despachar dali para fora. É verdade que eu não era um cidadão europeu perdido ou perseguido mas não gostei do comportamento. Eu ainda consegui passar da primeira porta mas ao pastor que me acompanhava não. Mas o Gendarmie deu as suas indicações que deveria de ir consulado no dia seguinte que ficava nas traseiras e como tal os visitantes não teriam mais nada a fazer ali.

Restou-me confiar em Deus e no anfitrião forçado. Fomos para Cabaret outra vez.

Quando cheguei o Pastor perguntou-me se eu queria ir para o hotel. Claro que não. Se eu precisasse de alguma coisa a que horas me iriam buscar? Eu já sabia como eles resolviam os “imprevistos” na melhor das descontracções. Fiquei na casa do Pastor e ele simpaticamente cedeu-me a sala e disse que iria trazer uma cama para ali para eu ficar à vontade.

Estava um calor sufocante lá dentro. Não havia electricidade e em vez de portas havia cortinas. Desculpou-se por a televisão não trabalhar ao que lhe disse que não precisava disso. Na verdade a minha preocupação era outra. A comida. Eu corria o risco de passar por um desarranjo intestinal muito desagradável mas felizmente isso não chegou a acontecer. Essas coisas de uma forma natural porque o nosso organismo não está habituado a bactérias diferentes e primeiro que o mesmo se ajuste a novos hábitos pode haver algum transtorno. Por isso evitei tocar em saladas e outros alimentos que eventualmente tenham sido lavados em água não engarrafada. Mostrou-me também a casa de banho e explicou que uns baldes eram para a cara, mãos e banho e outros eram para a sanita. O lavatório está numa parede e o espelho está noutra. O banho é feito com um púcaro grande de alumínio de cerca de um litro de capacidade. A temperatura da água convém ser mais fresca que o ambiente da rua porque se não for assim não faz tanto efeito.

Lá em casa habita uma jovem albina. A pele é branca e na cara e braços ela tem umas manchas redondas do tamanho de botões. Ela andava sempre a limpar a casa. Era frequentemente chamada para diversas solicitações. Vou chamar-lhe Cloe porque não consegui fixar o nome nem conseguiria escrevê-lo.

Estava a anoitecer quando ainda fiz mais uma tentativa de através da internet conseguir o que necessitava. Havia uma loja da DIGITEL em Cabaret e lá fui acompanhado de um jovem que vivia na casa do Pastor. O mesmo stress. Ainda entrei de novo no site que me foi dado mas pedia-me o cartão de crédito. Nem pensar em tal possibilidade de meter os números do cartão ali, ainda por cima na incerteza de não conseguir voo. O rapaz que tomava conta daquilo não pediu nada pela consulta.

Os vistos agora pedem-se aqui: http://www.cbp.gov/xp/cgov/travel/id_visa/esta/

A atenção deles por mim era imensa. No caminho a preocupação por me iluminar o caminho era evidente. Mas eu não queria ser diferente deles em nada, nem precisava.

Como estava extenuado deitei-me um pouco. Por duas vezes acordei com falta de ar a abrir a boca para respirar tal era o calor que estava. Quando se aproximou a hora de jantar o pastor chamou-me para me ajudar a lavar as mãos. Expliquei-lhe que me lembro muito bem como era na casa dos meus avós por isso ele podia ficar tranquilo. Ele só queria agradar e eu também não queria fazer nada que fosse desagradável e que sem querer pudesse cometer.

O céu foi iluminado com sucessivos relâmpagos. O vento começou a abanar tudo e a seguir claro, a chuva desceu do céu com ímpeto. Então eu quase chorei e senti-me tão perdido quanto privilegiado. Está a fazer-me bem este jejum da tecnologia. Pensamos mais em Deus, na nossa vida, nas nossas fraquezas e temores. E oramos mais também. E então decidi, tinha que decidir alguma coisa, e decidi partir para a República Dominica sem saber como, se podia e se poderia saltar para dentro de um avião lá. Não sabia como se ia, se havia autocarro para a fronteira, se tinha de pedir boleia a alguma organização.

Quando o Pastor chegou do culto eu estava a arrumar a mala e então disse-lhe o que ia fazer. Ele ficou apreensivo mas eu não tinha alternativa.

E deitei-me. Ainda bem que ninguém está a dormir naquelas tendas ali no quintal, pensei. Mas estavam. Durante a noite alguém se mexia durante todo tempo e eu ouvi. E também alguém a sonhar deixou escapar um grito de dor… Loie…

Pensei como estaria aquele milhão que está lá fora nas tendas e nas barracas, no herói desconhecido que ficou sem a sua tenda e saco-cama, mas esse deve ter-se desenrascado. O Pastor Rodrigue e os que restam da sua família também estão à chuva. Os irmãos da sua igreja também.

Dia 4

Aí pelas duas da manhã resolvi mandar mensagens a três amigos da minha confiança. Por palavras curtas disse que tinha perdido um avião e precisava de me escapar pela República Dominicana. Não fui pobre a pedir. Não lhes fiz saber uns dos outros para que pelo menos uma esmola não falhasse e pedi-lhes mil euros emprestados porque precisava de ter dinheiro disponível na minha conta para comprar bilhete de regresso assim que chegasse ao aeroporto. Eu não sabia se o Pr. Gabriel iria conseguir isso e eu precisava de jogar pelo seguro. Eles tinham mesmo que fazer o depósito porque era Sexta-feira e mesmo assim não sabia se o dinheiro ia ficar disponível quando precisasse de usar o cartão de débito no aeroporto.

Claro que não dormi. Levantei-me as 05:30 e vesti uma camisa suada. A roupa estava suada porque eu levei roupa contada… e só falo da camisa… Quando saí ás 06:00 para a rua uma das tendas estava virada ao contrário e o Pastor chega da Igreja e entrega-me os 200 dólares que lhe tinha pedido emprestados. Agradeci-lhe todo o apoio e ele ficou na dúvida quanto à minha entrada na RD por não saber se eu precisava do visa. Disse-lhe que não haveria problema. Além do mais não tinha escolha. Perguntei também quem é que tinha ido dormir para o chão para eu ficar na cama e ele apontou-me para duas pessoas. Agradeci aos pequenos jovens por gestos o seu sacrifício.

Ainda não disse que o meu condutor apitava prolongadamente por tudo e por nada para abrir caminho e para prevenir que algum peão se atravessasse na rua. Nunca vi igual. Os outros condutores não tinham este comportamento mas também não lhe ligavam nenhuma.

Pela estrada por onde fomos vi os carros mais velhos que já tinha visto até então. Autênticas latas ambulantes, ferrugentas e fumarentas; sem luzes e com pneus calvos. Pelo caminho também vi que todos os acampamentos tinham muitas tendas viradas, deslocadas e desfraldadas. Muita gente passou a noite à chuva a procurar segurar os seus frágeis refúgios. Em vez de um refúgio os proteger a eles, passaram eles a noite a cuidar dos refúgios.

Entretanto os meus amigos acordam em Portugal e dão com as mensagens nos telemóveis. Mas eles em vez de fazerem o que eu precisava começaram a fazer perguntas por não conhecerem o número e eu a ficar stressado porque também pagava as mensagens que recebia e não sabia quanto saldo tinha. À Rute só lhe pedi para carregar o telefone para não a assustar mas os dígitos de carregamento estavam errados. A qualquer momento eu poderia de precisar do telemóvel para resolver qualquer emergência. O meu cartão de telemóvel usual tinha-o deixado numa mala que haveria de retomar em Boston juntamente com o meu computador. O Eduardo disse-me que não sabia onde estava o dinheiro da Igreja. O João Pedro queria saber se eu tinha estado com o Valery, mas eu queria saber lá disso para alguma coisa neste momento. Mas foi o David Neutel quem percebeu que a situação era complicada. Eu queria era pirar-me dali para fora, isso é que era importante. Foram o David e o Eduardo que me depositaram 800 euros mas eu continuei com duas incertezas: não sabia como sair do Haiti e se chegasse ao aeroporto se conseguiria comprar bilhete.

Depois de termos ultrapassado do 438.823 buracos e de quase termos tido um acidente por um condutor depois de ter feito a ultrapassagem ter parado no meio da estrada sem concluir o que iniciou, chegámos à estação de autocarros. Era por ali o meu escape. Perguntei pelo visto e fiquei a saber que não iria precisar, tal como não precisei para o Haiti. Um grupo de brasileiros estava de regresso a casa e iam fazer o mesmo trajecto que eu desejava mas para mim não havia lugar e fiquei em lista de espera. Apercebi-me que as pessoas tinham um bilhete e estavam a receber uma pulseira azul no pulso direito. Entretanto o meu amigo condutor disse-me que ia a outra estação ver se havia lugar mas quando voltou fez sinal que não.

Finalmente recebi a resposta negativa e perguntei se podia comprar o bilhete para o dia seguinte. Custou 40 dólares. O meu condutor ficou também a saber que teríamos de estar lá às 07:00 para fazer todos os procedimentos e o autocarro iria sair ás 09:00. Frustrado entrei no carro de regresso a casa. Falhou definitivamente a minha chegada a horas ao meu serviço e também não estaria no culto no próximo Domingo de manhã. Avisei o meu chefe da situação e mentalizei-me que iria passar umas horas de espera desesperante. No regresso a casa um condutor de autocarro, literalmente, atirou-se para cima de nós e ia batendo na nossa viatura. Calmamente o meu condutor desviou-se e não buzinou! Quando chegámos a casa baptizei-o de “My Special Driver” e ele riu-se.

O dia foi passado para a frente e para trás, da casa para a Igreja, da Igreja para casa. Cá fora alguns jovens que não eram da igreja aproveitavam à vez as tomadas disponíveis do gerador para carregar os seus telemóveis. Estava na Igreja quando a Cloe trouxe o telefone do Pastor pois o Pr. Gabriel tinha ligado e fiquei por ali com o telefone pois estava tranquilo que tocaria outra vez. Quando tocou era o Pr. John e eu já sabia o que ele iria dizer assim que ouvisse a sua voz… mas ele fez bem em ir no avião pois não ficaria ali a fazer nada e o regresso dele também poderia ficar comprometido talvez por dias sem lugar no avião. Eu também não era nenhuma criança perdida, era um adulto e devia ter sido mais responsável na parte que me competia.

Perguntei onde ele dormia e ele apontou na direcção de um camião. “In the truck?”, perguntei-lhe. Acenou que sim. Assim poderia ficar mais descansado para o caso de ele adormecer e então combinámos sair ás 05:00. O carro dele, eu já sabia que ficava à porta da casa do Pastor, onde eu dormia, certamente por ser mais seguro para a viatura.

Entretanto o Pr. Gabriel e o Pr. John Amaral nesta manhã chegariam a Boston. Quando o Pr. Gabriel conseguiu falar comigo por telefone perguntou-me qual era o aeroporto porque havia três. Não fazia a mínima ideia, nunca lá tinha estado. Lá concluímos depois de falar com o pastor Clergio que deveria ser o aeroporto Las Américas, da cidade de Santo Domingo. Mas a dúvida prevaleceu até ao fim porque havia nos sítios da internet dois aeroportos com o nome de Santo Domingo. Como o autocarro chegaria a Santo Domingo às 5 da tarde o voo à noite dava bastante margem de segurança para chegar a tempo.

Disponibilizei-me para pregar à noite se o Pastor quisesse e ele aceitou. Pela primeira vez preguei em Inglês. Sem papel e sem Bíblia. Tinha-me esquecido dela na Igreja em Dortmouth. Compartilhei o meu testemunho, sobre o terramoto e o tsunami que acerca de 300 anos ocorreu em Lisboa e que um dia vamos todos habitar num lugar completamente seguro. A maior parte deles não sabia onde ficava Portugal. No fim o intérprete, que no início estava preocupado e me pediu para eu ser simples, disse: “It was powerfull Pastor, thank you!” Ainda bem que gostámos os dois mas na verdade mal consegui terminar pois tive que antecipar a oração final porque o gerador foi-se abaixo.

johnnylouis23@yahoo.com

Dia 5.

Levantei-me as 4 da manhã. É escusado dizer que não consegui dormir. O stress e a ansiedade de que tudo hoje pudesse dar certo eram enormes e a responsabilidade também. Não queria mais surpresas hoje. Fui tomar o meu banho de púcaro e às 4:30 esta já estava com a mochila e a mala à porta. Desenrasquei-me como pude para destrancar as portas que me impediam a fuga e vi a viatura que me iria transportar estava ali intacta, com rodas e tudo.

E esperei que o Special Driver chegasse. Os meus olhos estavam focados no “truck” para ver quando é que ele pulava dali para fora. Sempre que via alguém a aproximar-se recolhia-me para dentro do quintal. Às 4:56 não aguentei mais e fui buscá-lo. Apontei o “flash” (o nome que davam à lanterna) lá para dentro e estava vazio! Fui à cabine e cheirava a camião abandonado. O Special Driver não dormia ali. A comunicação tinha falhado, ele tinha-me dito que dormia ali mas na verdade não me tinha entendido.

Regressei a casa e fui acordar alguém que me pudesse dizer onde ele dormia. Duas pessoas dormiam no chão do hall de entrada da casa e quem ficou com o sono estragado foi a Cloe. Também não sabia onde ele dormia. Ela acordou um jovem que estava dentro de uma das tendas no quintal e ele também não sabia.

O Pastor. Onde está o Pastor? Na Igreja, respondeu ela. Fiquei intrigado com a resposta, eu levantei-me cedíssimo e o Pastor já está na Igreja. Fui lá e apanhei mais um choque. Várias pessoas roncavam no chão cobertas com lençóis brancos. Aqueles pretinhos lindos que ontem no culto estiveram a mexer nas minhas mãos também estavam ali com toda a certeza, e claro, também, o único que tinha colchão, lá estava atrás do púlpito o guardador daquele rebanho. Agora percebi porque é que ele estava a chegar da Igreja tão cedo ontem de manhã.

Acordei-o e expliquei a situação. Ele ligou para o jovem e ele não atendeu. Mas o Pastor tranquilizou-me dizendo que não era preciso ir tão cedo e que chegariam à estação rapidamente. E também não sabia onde dormia o meu piloto. Mas eu disse-lhe que tínhamos combinado às 5:00. Porque não haveria de ficar tranquilo? Claro! Agradeci e saí. Não havia outro remédio. Sentei-me numa cadeira e aproveitei para contemplar as estrelas. Através das nuvens consegui ver a Ursa Maior.

Por fim chegou. Por volta das 05:30. Chegou ele e um dos pregadores que pensei que tinha sido mandado pelo Pastor para cuidar de mim. Mochila e mala imediatamente p’ra dentro do carro. Disse-lhe que ia andando para dizer ao Pastor que estava tudo bem e ele vinha apanhava-me na Igreja já que sabia que era por lá que iria passar para sair de Cabaret.

O dia começava a raiar mas ainda não havia luminosidade para fotografias. Cá fora do templo os homens aliviavam-se de pé. À porta da igreja estava também agachada uma irmã nossa a olhar-me vendo que me dirigia para a porta. Fingi que não vi e entrei para a Igreja. O povo estava a levantar os lençóis para às seis da manhã tomarem o pequeno-almoço: louvor e oração.

O Pastor também estava acordado e agachei-me junto da cabeceira e disse-lhe que estava tudo bem, que o condutor já tinha chegado. Dei-lhe um beijo na face e sai.

O carro ainda não tinha saído do mesmo sítio porque o Special Driver estava a por água do radiador, a ajeitar o pára-brisas mas eu entrei para dentro carro na mesma. Depois veio desembaciar o vidro por dentro. Tudo nas calmas. Finalmente pôs o carro a trabalhar que gaguejou e se foi abaixo, mas lá começamos a contar buracos. Finalmente. Passámos pela “casa dele” que fiquei a saber onde era – numa tenda de mais um quintal, na direcção do truck, claro. Àquela hora o povo de Cabaret estava a despertar e a levantar-se de debaixo das varandas onde dormiam, na rua e a sair das tendas. E seguimos estrada a fora.

Passámos o camião que continuava avariado no meio da estrada e então me dei conta que um pregador da Igreja ia lá atrás e a minha mala confortavelmente instalada no meio das minhas pernas. Pedi para parar o carro e pedi desculpa com gestos pela minha distracção. Como se pode imaginar a minha cabeça estava virada do avesso com uma única obsessão: conseguir sair dali para fora. Eu já conhecia o caminho. Em vez de seguir pela estrada que o terramoto tinha partido ao meio longitudinalmente seguiu por outra. Estranhei mas confiei. Percebi que por ali era mais perto e que ainda não havia muito movimento aquela hora. Era a estrada que tinha longos quilómetros de mercado ao ar livre.

Depois de uma tangente de arrepiar a um ciclista cortou por uma rua com mais desgraça. Percebi logo que era mais um atalho. Mais casas derrubadas, mais tendas e claro mais buracos. Chegámos eram 06:21. Ele todo satisfeito fez-me olhar para o relógio para me provar que tinha razão. Estavam lá dois autocarros os quais foram embora antes das 7:00.

Então a presença do meu Special Driver a partir de certo momento começou a causar-me insegurança. Eu já lhe tinha dado a gorjeta, 40 dólares, mas a simpatia da sua presença fazia-me sentir que ele estava ali para me levar para trás se coisa corresse mal. Este tipo de prevenção estava a transtornar-me a cabeça por eu não querer voltar a precisar dele.

O escritório finalmente abriu com a pontualidade Haitiana e eu fui o primeiro a levar uma braçadeira azul. A seguir pediu-me mas 10 dólares e eu dei. Depois a moça disse que era 30 e eu dei mais vinte. A seguir pediu-me, não sei mais quanto em dólares Haitianos e eu tive de puxar pela nota que tinha de recordação. O meu protector aproximou-se e disse que era para viagem. Fiquei com a sensação de que tinha sido roubado mas vou dedicar-lhe o benefício da dúvida. Também vi que os outros a seguir também desembolsavam mais qualquer coisa mas não sei ao certo quanto.

Finalmente despedi-me do Special Driver. Abracei-o e agradeci-lhe. Mandei também uma mensagem ao meu chefe a dizer que ia sair do Haiti e que esperava que não houvesse mais imprevistos. Quando levantei os olhos a minha mala já não estava lá! Calma. Foi só o bagageiro que a mudou de sítio. Na estação comprei um doce, um pacote de bolachas e um Kit Kat por 1 dólar cada peça. Foi a primeira vez que me consegui aproximar de alguém para comprar alguma coisa porque na rua nem pensar numa coisa dessas. Desde o dia que partimos para o aeroporto que não sabia o que era um pequeno-almoço.

Ainda consegui negociar umas notas do Haiti porque gosto de ter sempre algumas dos países onde vou. Assim fiquei com algumas notas de 1 dólar para as emergências. No bolso direito pouco montante, no esquerdo uma de 100 dólares mais 50 euros, na camisa notas de 20. Passava das nove quando um dos autocarros regressou e depois de muitas formalidades com muita calma lá entrámos. Enquanto esperava para entrar lembrei-me que não sabia onde tinha posto o meu canhoto da bagagem de que ia na mala do autocarro. Comecei a revistar-me e um passageiro também fazia o mesmo discretamente para ver o que eu tinha dentro da mochila. Desisti. Acabei por ser dos últimos a entrar e fui lá para trás para o último banco do lado esquerdo. Atrás de mim à direita estava o W.C. com um aviso na porta em três línguas de que era só para urinar. Ao meu lado esquerdo à janela ficou uma senhora jovem que ocupou o banco dela e uma boa parte do meu. Era o único branco naquele autocarro.

Ás 09:53 finalmente o autocarro fez-se aos buracos da estrada. Ainda bem que o voo tinha sido marcado para bastante tarde e por isso uma hora de atraso não faria grande diferença.

O rodopio a caminho do W.C. não tardou e eu era o porteiro. A porta fechava mal por fora e as pessoas não a conseguiam abrir por dentro. O tempo que levou para sair da cidade foi imenso. Finalmente, depois de mais devastação a campos de tendas saímos por uma estrada em direcção à República Dominicana que em algumas partes era de terra batida. Imagino que estaria em muito boas condições por ter sido melhorada para deixar passar os milhares de camiões de abastecimento do país que no caminho se cruzaram por nós e fazia com que o autocarro reduzisse a velocidade para que ambos passassem.

Chegámos à fronteira por volta do meio-dia. Alguns passageiros saíram com os passaportes, acho que, para tratar do “visa”. Depois lá seguimos mais para a frente e saímos todos para fazer a saída do Haiti. Estava um caos. Camiões carregados de mantimentos não permitiam que o autocarro andasse. Depois acabámos por sair todos do autocarro e fomos a pé para a terra de ninguém. A paisagem mudou de para duas cores: preto e cinzento. Um chiqueiro de barracas de alimentos com peixe frito e fruta do pior que já tinha visto. A lama criada no dia anterior e o pó gerado pelo sol desse dia compunham o cenário da degradação. Não consigo entender que negócio eles poderiam faziam ali no meio daquele caos.

Só do meu lado esquerdo havia cores. Os camiões humanitários com autocolantes de várias organizações e os contentores acusavam a sua proveniência: Alemanha, U.S.A. Brasil e Israel, são os que me consigo lembrar. Claro que não dá para pensar que poderia tirar o meu telemóvel do bolso que tirar uma única fotografia sequer.

Entrámos para uma sala com uns 100 metros quadrados. À minha direita estavam uns Dominicanos sentados encostados à parede com umas mesas à frente que me intrigou por não terem qualquer farda. Não demorou a perceber que as malas tinham todas sido tiradas do autocarro para uma revista pois os primeiros passageiros que já tinham entregue o passaporte vinham a arrastar com elas para as mesas. Decerto que iriam mexer no meu bolso também. A cor da minha pele não me deixaria escapar. Depois de entregar o meu passaporte lá fui ter com a minha mala que entre outras estava por ali virada ao contrário no meio do pó e da confusão.

Um artista gordo de camisola branca perguntou-me qual era a minha e baixinho disse em castelhano: “deixa comigo”. E começou a tratar de a por de volta no porão do autocarro. O guarda de fronteira viu e perguntou-me se a mala já tinha ido lá dentro. Eu disse que não. Então os dois entraram em diálogo e o guarda abriu-a ali mesmo e não revistou nada de especial. Só tinha roupa. Os valores estavam comigo na mochila que pendurada no meu peito e não se interessaram por ela. A máquina de filmar não era propriamente um objecto que eu gostaria que se visse. Aquela mala de porão na verdade eu até estava mentalizado para a deixar para trás se fosse necessário.

O homem da camisola branca lá acabou por entrar dentro do porão do autocarro para arrumar a mala mas de repente, ofegado, gritou lá debaixo: AGUENTA, AGUENTA! Claro que percebi muito bem. Ele pensou que eu me ia pirar para dentro do autocarro. Dei-lhe um dólar mas ele pediu mais. Dei mais um e ele apontou para a boca que precisava de comer. Como ele tinha visto os três dei-lhe o último, abanei a cabeça, virei-lhe as costas e subi para o chaimite enquanto os outros passageiros ficaram a desembaraçar-se daqueles pedintes como puderam. Fiquei desarmado. Se tivesse mais uma situação destas a nota mais pequena que tinha a seguir era de 20.

Enquanto esperava entrou uma senhora com sacos com comida. Um cheiro enjoativo. O aspecto da sua roupa não a recomendava de modo nenhum no ramo alimentar. Entrou várias vezes para deixar sacos comida dentro de recipientes do género de “fast-food”. Trouxe tudo para o pé de mim e eu estava cheio de fome por já ter passado o efeito do doce e das bolachas. Quando chegaram os restantes passageiros, excepto a companhia do meu lado, o motorista distribuiu as refeições mas eu pus a minha no banco do lado. Não queria comer. Mas não resisti a abrir e vi que tinha bom aspecto. Depois de uma longa oração comi o que consegui – o arroz branco e o frango estufado com cor a caril e tinha bom sabor. O recipiente com feijão vermelho e molho não me atrevi a misturar no arroz. E assim matei o bicho e esperei que as surpresas finalmente tivessem terminado. A passageira do lado lá acabou por chegar toda irritada e afogueada. Tanto quanto percebi da conversa houve ali uma questão qualquer sobre um dólar americano. Foi a imagem com que fiquei da República Dominicana.

Eram duas horas da tarde e o autocarro não tinha percorrido senão apenas alguns metros. O nível de ansiedade subiu de novo e eu comecei a andar para a frente e para trás no corredor. Encontrei alguém que falava Inglês e perguntei que horas eram na RD. 15:45! Nem queria acreditar. Perdi mais uma hora pelo adiantamento do fuso horário. Dei a conhecer que tinha um avião para a apanhar e claro que o autocarro já não chegaria ás cinco da tarde. Só chegaria depois das sete! Perguntei se esta confusão era assim todos os dias e reponderam-me que havia um acidente com um camião militar por isso o autocarro não andava. Fiquei convencido. Eu iria perder outra passagem dali para fora. Ainda não sabia quanto tinha sido gasto nesta mudança e incomodava-me também ter que mandar uma mensagem de parabéns ao meu chefe por ter sido escolhido para ser o primeiro a saber de alguém que tinha perdido seis voos numa viagem só.

Enquanto o autocarro lá ia andando a passo de caracol e inclinado na berma o suficiente para haver notícia de um acidente de um autocarro com um português lá dentro, eu tirava fotografias. Descobri um hospital Canadiano feito de contentores e fotografei as duas filas de camiões humanitários que também tentavam furar na direcção do Haiti. Aquela estrada onde só raramente devia circular um veículo pesado de vez em quando estava entupida com três viaturas pesadas lado a lado. Duas num sentido uma noutro.

Vagarosamente o autocarro lá se safou para as montanhas da Rep. Dominicana e tão devagar quanto subia, descia travado pelo motor. A paisagem do país mudou. Agricultura e escolas com gradeamento faziam diferença relativamente ao lugar de onde me escapei. O autocarro subiu e desceu por várias vilas e lugarejos e o que denunciava uma distribuição diferente da população pelo território. Anoiteceu e o autocarro não chegava ao destino. Não perguntei mais a que horas chegaria. Tanto quanto me lembrava o Pr. Gabriel tinha-me dito ao telefone que o voo seria as 21:20.

O passageiro que me espreitou a mochila à entrada do autocarro acabou mesmo por fazer das suas… Defecou no W.C! Ninguém mais utilizou aquele refúgio. Segurei-me quanto pude por ter uma sensibilidade especial aos cheiros. Mas passados uns dez minutos depois do alívio daquele passageiro, num ápice arranquei a mochila do seu pouso e disparei em direcção á frente do autocarro antes que a maioria dos outros passageiros se levantasse – tinha acabado de ver a tabuleta da empresa TERRA BUS. “Tu vás a conseguir, acredita!” Disse-me um passageiro. Foi tocante aquele consolo. “Gracias!” Eram 20:30. Eu já sabia que o táxi ia levar 20 a 25 minutos até ao aeroporto.

Simpaticamente os passageiros deixaram-me sair na frente e os taxistas assaltaram-me. Disse a um que a mala era aquela de cor laranja enquanto percebia que os passageiros comentavam que eu tinha um voo para apanhar. Logo percebi que aquele motorista não seria o Special Driver II porque o autocarro estava parado a frente dele. “Está trancado”, disseram. Simpaticamente ele cedeu a minha mochila a um que tinha o carro desimpedido embora não estivesse caracterizado como TAXI. Não importava. O ambiente que me envolvia e a qualidade dos carros faziam-me sentir seguro. Mas foi por pouco tempo.

O Special II tinha alguma idade mas era simpático e meteu prego a fundo. Fez algumas tangentes naquela via rápida e só então reparei que havia uma luz amarela no painel. Espreitei melhor para consegui ver certo ponteiro e disse para mim mesmo. “Entrei num carro sem combustível…”. Entre centenas de táxis nesta bonita cidade, entrei num sem combustível. Além disso o taxista ia nervoso. Movimentava-se para a frente e para trás no banco e as mãos no volante ora estavam em cima ora em baixo. Quando vi um avião aterrar apercebi-me que não faltava muito mas lembrei-me que também não tinha a certeza de que aquele era o aeroporto certo.

“Daqui a 15 minutos chegaremos lá”, disse, e perguntou-me se eu tinha 30 pesos. Não podia ser para pagar a corrida que eu já sabia que ia ser uns 40 dólares. Era para a portagem. Disse que não tinha e então ele parou o carro e foi buscar a carteira à bagageira. Ainda não tinha chegado ao aeroporto e perguntei-lhe quanto era. “40 dólares”. Eu tinha que perguntar. Perguntei-lhe se tinha 10 para me dar de troco por querer dar-lhe 50.

Entrei lá para dentro e fiquei aliviado quando vi a no painel o voo da Ibéria para Madrid. Coloquei-me na fila e esperei a minha vez. Dei o passaporte e a balconista procurou o meu nome. Não estava. Saquei do telemóvel e dei o código de reserva. Não estava. Ele dirigiu-se para outra pessoa e aquele chamou outro que me levou o telemóvel e o passaporte lá para dentro. Depois de ter passado mais uma eternidade (a única medida de tempo que funcionava na minha cabeça) ele regressou (com o telemóvel também) e disse que era na companhia AirEuropa. Olhei para o fundo e não havia mais ninguém em mais nenhum balcão de Check-In. Fui ter o polícia e ele dirigiu-me para uma pessoa que apontou para trás de mim para o escritório dessa companhia. Abri a porta e estavam duas pessoas lá dentro que conferiram o número e chamaram e trabalhador do Check-in. Fiquei finalmente com a sensação de que escaparia e fui com aquele funcionário que me perguntou por onde tinha entrado na RD. Preenchi dois formulários de saída do país e sai dali com os bilhetes de entrada e com uma etiqueta na mochila e outra na mala. Ultrapassei os obstáculos de controlo que faltavam para entrar e fixei os meus olhos na placa A2 – a porta de embarque. A meio caminho vi o avião daquela companhia pelos vidros do aeroporto. Ao dobrar uma esquina vi toda a gente sentada na maior descontracção. Acho que estavam todos a olhar para mim.

Ainda deu tempo para ir ao W.C. lavar os sovacos, e vestir a última camisa que tinha sido reservada para esta viagem de sonho. Pensei então em aproveitar a pausa para tirar o Kit-Kat que me sobrara da mochila. Não era Kit Kat, era KING TAT! A embalagem é parecida mas um olhar mais atento e concluí que era um imitação chinesa. Não o comi e guardei-o comigo Tranquilamente bebi aquela bebida de baunilha que o Pr. John Amaral me tinha dado, das que ele tinha trazido para o Haiti mas tinha perdido na mala que ficou no aeroporto. Pela segunda vez aquela lata de bebida tinha passado num controlo de raio X.

No avião sonhei que estava num terramoto por causa de uns solavancos que o avião de vez em quando dava.

A minha esposa foi-me buscar ao aeroporto, fomos almoçar e ela ficou a saber das verdades todas. Liguei ao Pr. Gabriel que já tinha tentado ligar-me várias vezes mas eu estava lá em cima e fiquei a saber quanto custou este Plano B. Pedi-lhe para me enviar o cartão do meu telefone e a pen da internet. O portátil e o resto da minha bagagem virá pelos Açores. A seguir fui dormir para entrar de serviço das 23:00 as 07:00 da manhã, onde comecei a fazer o registo desta aventura.

Não cometi nenhum exagero neste relato à excepção do número de buracos que obviamente não contabilizei. Se me perguntarem se voltarei a fazer algo parecido direi que sim. Aprendi imenso. Só estaria mais relaxado se não fosse a responsabilidade e as limitações de tempo, e claro, de dinheiro.

Ore e faça alguma coisa pelo povo do Haiti.

Sem comentários:

Enviar um comentário